quarta-feira, maio 2

Folha Seca

A: Sabe, tenho um terrível amor à vida, embora, já tenha pensado em dar cabo nela.
B: Embora tenha pensado eu mesma em dar fim nela, tenho amor a alguma coisa.
A: Hoje pela manhã, escutei um pássaro cantar na minha janela. Adoro pássaros, principalmente aqueles de canto doce. Quando ouço um cantar, meu coração se enche de alegria.
B: Ouço os pássaros quando paro de escutar tantas outras coisas a minha volta, dificilmente os ouço, já que o barulho dos carros, o som alto do rádio, os batuques os barulhos um prego um martelo um barulho infernal, para. Minha vida, outra casa, porque eles não me amam, quando é que tudo isso um dia vai poder talvez parar, como tudo começou, como, como uma comida cada dia mais sem gosto, um sabor amargo de viver, esse barulho infernal que não acaba nunca, eu tenho vontade de dar um murro na parede, de subir naquele morro e me jogar lá de cima.
A: Tenho ganhado tantas flores pelos caminhos que percorro. Flores coloridas, de todos os tipos e cheiros. A última tinha um cheiro doce levemente aveludado com um fundo vanilhado, ela era branca. Penso nas flores e vejo essa terra avermelhada, essa terra que tudo brota, de onde nasci e para onde voltarei um dia. Que dia lindo. Já viu como o céu está azul?
B: Os caminhos que percorri me presentearam com lindas rosas vermelhas, cheias de espinhos, com elas histórias com um fim, digamos que, trágico. Sempre ganhei rosas. O que vejo, agora, é lama a minha volta, e está muito escuro aqui. E não há nessa história nenhuma borboleta branca voando a lama na escuridão. Já reparou nesse céu? Dias de sol são irritantes. Tenho me sentido bem em dias nublados, dias cinzentos, como meus olhos.
A: Sempre falaram que tenho um olhar doce, e mesmo nos momentos de raiva permaneço com uma certa doçura neles. Lembra quando quase nos separamos? Quem olhasse não diria que estávamos com problemas tão sérios. E mesmo assim eu permanecia olhando docemente para as pessoas.
B: Mas sempre me disseram que meu olhar é indecifrável, uma grande incógnita, embora, eles olhem profundamente procurando te decifrar. Você sempre fingiu muito bem, soube muito bem pintar os olhos de sorrir ou chorar, e a culpa é sua.
A: Vivo por nós, respiro você. E a culpa é minha? Você que vive na escuridão.
B: Vivo na escuridão para que você viva na luz. A culpa é minha? Tenho tido péssimas noites de sono, estou dormindo muito pouco, e quando durmo tenho pesadelos. Fico o dia inteiro zanzando de lá para cá sem saber direito o que fazer. Não paro de pensar nisso tudo a minha volta e tenho me preocupado mais contigo do que comigo, eu já não importo mais tem muito tempo.
A: Porque fazer isso? Eu ainda sou importante de alguma forma? Quero te ter comigo, ou não me tenho.
B: Tenho as pétalas vermelhas secas guardadas, para que um dia, lá de cima daquele morro, você as jogue no momento exato em que eu estiver pulando. O dia vai estar ensolarado, o céu vai estar diferente e não vai ser primavera nem verão. Eu vou abrir os braços sentindo o vento bater no meu cabelo, respirarei fundo e escutarei os pássaros cantar. Nesse exato momento eles cantam. Vou inclinar meu corpo para frente, e não mais pensar em nada. Sentirei cheiro de flores, baunilha, e cairei, devagar, o vento batendo no meu corpo, cairei sobre um manto de folhas secas.
A: Dorme vai. Amanhã o dia vai estar bonito, nublado, esses dias cinzentos que você tanto gosta. Você vai sair, e eu vou ficar. Esperando um dia ensolarado. Há algo que nos espera, amanhã, ou depois.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sensível!!!! bjs, Aline