sábado, abril 14

Ela andava meio atordoada. Seus olhos estavam intumescidos, mas ela já havia acordado a horas. Também não era sopor, talvez algo semelhante a um entorpecimento. Andava meio atordoada, pasmada, estonteada, abalada. E andava, sem pressentir nem sentir. Deitou, levantou-se e sentou-se a beira da cama. Seu coração palpitava descompassado, era possível sentir sua veia do pescoço latejando. Arquejava. Sentia uma forte dor na garganta, como se algo estivesse abafado, um choro incontido, um clamor interno. Visto de fora ela parecia uma pintura desbotada, mantendo apenas uma coloração rosada nas maçãs do rosto. Visto de dentro havia uma rachadura na parede branca do quarto, precisa de uma cor nova, quente, talvez verniz composto de resina e sangue-de-drago dissolvidos em álcool, um rubro escarlate. Ela observava minuciosamente a rachadura, por longos minutos, até dar a impressão de não mais possuir vida no seu corpo miúdo. Fazia-se nula. O seu olhar, paralisado, estudava a sublime fenda, seu início e seu fim. De repente ela pegou um prego e começou a martelar dentro da fenda. A rachadura foi se espalhando rapidamente pela parede, a casa começou a tremer e o teto a descer, em pedaços. Suas vistas embaçaram, piscando os olhos ela voltou a si, e pode perceber a grandeza da destruição. Correu até o banheiro, arrancou a roupa como se quisesse se desprender de algo, se ver livre. Ligou o chuveiro no máximo, água gelada escorrendo pelo corpo, encostou suas mãos na parede, sua cabeça entre elas, foi descendo devagar até o chão. Uma explosão dentro do seu corpo, asas de borboletas batendo no estômago. Chorou. Até não ter mais lágrimas, até soluçar, se perder e se achar. Começou a enxergar as coisas de um modo diferente. Com bastante nitidez percebia toda uma estrutura apoiada sobre um pequeno ponto fraco. Há sempre uma fenda que pode ser atingida.

Notas do Subterrâneo


"...Acontece que tenho um terrível amor-próprio. Sou tão desconfiado e suscetível quanto um corcunda ou um anão, mas, realmente, há ocasiões em que, se me derem uma bofetada, isso talvez me rejubile. Falo a sério; eu provavelmente descobriria aí um tipo especial de prazer - evidentemente, o prazer do desespero, pois é o desespero que encerra os mais intensos prazeres, particularmente quando se tem uma aguda consciência da própria situação. Quando somos esbofeteados, a consciência de termos sido feitos em pedaços positivamente nos avassala. O principal é que, pense-se o que se quiser, eu sempre aparecerei como o maior culpado, e o que é mais, culpado sem culpa, ou, ao contrário, segundo as leis da natureza. Em primeiro lugar, porque sou mais inteligente do que todos que me cercam. (Sempre me considerei mais inteligente do que os que me cercam, e às vezes, acreditais, até tive vergonha disso. De qualquer forma, durante toda a vida olhei as pessoas assim de lado, nunca fui capaz de encará-las.) Culpado, finalmente, porque mesmo que eu fosse capaz da magnanimidade, a consciência da inutilidade dessa virtude só serveria para me fazer sofrer mais ainda. De nada me adiantaria certamente a minha magnanimidade: nem sequer me valeria para perdoar, pois o meu ofensor talvez me golpeasse segundo as leis da natureza, e as leis da natureza são inexoráveis; nem, por outro lado, eu poderia esquecer, porque, ainda de acordo com as leis da natureza, tratar-se-ia de uma ofensa. Enfim, mesmo que eu desistisse de ser magnânimo e desejasse, ao contrário, me vingar do meu ofenssor, não poderia vingar-me de nada, nem em ninguém, pois não era capaz de me decidir a fazer coisa alguma, mesmo se tivesse condições de fazê-lo. E porque que não me podia decidir?..."

Fiodor Mikhailovitch Dostoievski - Notas Do Subeterrâneo